[:pt]Nos primeiros dias do mês de junho de 2020 só um tema foi capaz de ofuscar, na mídia, os nefastos efeitos da pandemia da COVID-19 na saúde e economia brasileiras: a ameaça à democracia representada por um suposto golpe em andamento, tramado nos bastidores do poder e incendiado por manifestações na Capital Federal, colocando em antagonismo os três poderes da República – Executivo, Legislativo e Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF) -, justamente no momento em que o combate à doença requer união e coordenação de todos os entes públicos e agentes políticos.
Manifestações pacíficas, ainda que bradando bizarrices como intervenção militar e o fechamento de instituições, são sumariamente taxadas de antidemocráticas e contrárias às determinações da Organização Mundial da Saúde (OMS) no que diz respeito ao controle da pandemia, enquanto outras violentas, com depredação do patrimônio público e privado e confronto com policiais militares são louvadas como democráticas e endossadas por juristas, artistas e intelectuais a pretexto das bandeiras (no sentido figurado) que soerguem, e sem maiores lamurias acerca dos riscos das malfadadas aglomerações.
O físico teórico alemão Albert Einstein teria dito, certa vez, que seu ideal político é a democracia, “para que todo homem seja respeitado como indivíduo e nenhum venerado”[1], mas numa análise fria, distante e despida de paixões, é curioso notar como o termo “democracia”[2] no Brasil vem sendo propalado sem moderação por diversos atores e setores, servindo como salvo-conduto para qualquer ato (ou omissão) de quem quer que seja, de qualquer ideologia ou lado, inobstante os estragos ou prejuízos que possa causar a terceiros ou à sociedade. Sob essa ótica, se o candidato favorito venceu eleições livres, fez-se a democracia!, se não, seu opositor se tornou uma verdadeira ameaça a ela – relembrando (e parafraseando) o famoso (e inesquecível) comercial da Semp Toshiba da década de 1990, “a nossa democracia é melhor que a democracia dos outros”.
Bom, nesse ponto, à parte a crônica política e com foco no compartilhamento de conhecimento e experiências em gestão, governança e sucessão em empresas, especialmente as familiares, pergunta-se: o que essa retórica sobre a democracia tem que ver com o seu negócio? Tudo! Projetando o ambiente político no contexto de sua empresa, a governança vem sendo aplicada e exercida com o mesmo pretexto e viés?
Em uma estrutura societária de dono, seja no aspecto puramente jurídico, do direito de propriedade ou de controle, seja no aspecto moral, no sentido de que “a empresa é minha e eu faço o que quero”, a governança implementada por meio da gestão de processos, controles internos, compliance de obrigações legais e fluxo de informações financeiras e operacionais denota a mesma importância quando comparada a companhias abertas, dados os benefícios cientificamente comprovados da controladoria e da contabilidade gerencial no monitoramento de resultados e geração de valor, fornecendo ao titular elementos relevantes e atualizados para a tomada de decisão sobre o seu negócio. Mas qual o intuito ou benefício da transparência e da observância estrita às regras de controle e preponderação em deliberações ou órgãos internos de controle (e.g. conselhos de administração e fiscal, comitês de auditoria e de crédito), a chamada accountability, quando o poder é concentrado e ao mesmo tempo legitimado, tal qual numa Monarquia?
Claro que, sem meritocracia ou perspectivas de crescimento dentro da estrutura organizacional, determinados perfis de pessoas perdem sua motivação para o trabalho, deixando de empenhar plenamente suas capacidades, habilidades e recursos ao crescimento da organização, mas para isso Michael C. Jensen e William H. Meckling nos brindaram, nos idos de 1976, com a Teoria da Agência[3] e seus mecanismos de controle, redução de custos transacionais e incentivos por parte do principal (proprietário) para que o agent (diretor, empregado, colaborador) entregue os melhores resultados à organização, beneficiando-se de parte deles (o chamado “residual”), mesmo que sem buscar a alteração da estrutura de propriedade e controle. Nesse cenário, portanto, tal como numa Monarquia, a perpetuidade da organização depende muito mais da manutenção da estrutura de propriedade e dos incentivos assegurados aos agentes, do que propriamente da implementação de uma governança “para inglês ver”[4] – aliás, com o perdão do trocadilho, os britânicos ainda se mostram majoritariamente (70%) satisfeitos com esse modelo[5].
É quando surge o desdobramento da estrutura de propriedade (e.g. empresas fundadas por dois ou mais sócios, que admitiram novos sócios ou que incentivam a adesão de líderes internos como sócios de capital) que a governança corporativa assume sua faceta fundamental, de arbitrar a convivência e, principalmente, preponderância entre os sócios, de forma que os interesses da organização e da maioria (qualificada ou não, nos termos da lei aplicável ao caso concreto) prevaleça sobre os desígnios dos sócios, sobretudo os pessoais (e mais danosos), sempre levando em consideração o bem maior, a reputação, a lucratividade e a perpetuidade da organização.
Ora, se a governança só serve para o sócio ou acionista quando o seu projeto, voto ou opinião se sagra vencedora por meio dos mecanismos daquela, ou ainda quando a autonomia (a “carta branca”) dos agentes é exercida em sua estrita concordância, dando ares de que a opinião de todos conta em sua organização como suposta legitimação das ações ou subterfúgio para o insucesso de decisões tomadas em conjunto, mas quando o processo decisório ou o exercício regular da autonomia lhe desagrada ou lhe desautoriza, este sócio ou acionista apela ao poder ilimitado (como feito pelo Presidente da República com seus Ministros em diversas ocasiões nos últimos meses), tal discurso, de tão descolado da prática, resulta mais danoso que a simples inexistência da governança.
Em suma, caro leitor, o verdadeiro democrata não é aquele que concorda com o que dizes, mas sim aquele que, mesmo discordando, “defende até a morte seu direito de dizê-lo”[6], da mesma forma em que a premissa da governança corporativa na empresa familiar é de que todos os sócios ou acionistas envolvidos aceitem submeter-se a ela, de forma incondicional e irrestrita, respeitando-se a diversidade de opiniões, visões e posicionamentos e fomentando-se a persuasão e a conciliação de interesses em benefício da organização, caso contrário, todo o custo financeiro e operacional de sua implementação será em vão, além do risco moral de descrédito sobre a retórica de que em sua empresa a governança corporativa é, de fato, levada a sério.
Por isso, conte sempre com especialistas para auxiliar seu negócio familiar a encontrar o modelo mais adequado – e legítimo – de governança corporativa, incluindo suas matizes gerenciais, negociais e legais, evitando-se que seja talhada no intuito único de arder (no sentido figurado, claro) somente nos olhos dos outros.
[1] Fonte: https://www.pensador.com/frase/NjI0Mg/, consultado em 04/06/2020.
[2] “Governo em que o povo exerce a soberania, direta ou indiretamente”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2020, disponível em https://dicionario.priberam.org/democracia, consultado em 04/06/2020.
[3] “Theory of the firm: Managerial behavior, agency costs and ownership structure”, Journal of Financial Economics, Volume 3, 4ª Edição, Outubro de 1976, pp. 305-360, disponível em https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/0304405X7690026X.
[4] Segundo uma das versões sobre a origem da expressão, “no tempo do Império, as autoridades brasileiras, fingindo que cediam às pressões da Inglaterra, tomaram providências de mentirinha para combater o tráfico de escravos africanos – um combate que nunca houve, que era encenado apenas “para inglês ver””. Fonte: Veja, disponível em https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/como-nasceu-a-expressao-para-ingles-ver/, acessado em 04/06/2020.
[5] Fonte: Daily Mail, em pesquisa realizada pela ComRes em 2015 com 2.020 cidadãos britânicos, disponível em http://comresglobal.com/wp-content/uploads/2015/04/DailyMail_Monarchy-Poll_April-2015.pdf, acessado em 04/06/2020.
[6] “Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo”, frase atribuída ao pensador francês Voltaire, entretanto cunhada pela escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall, nascida em 1868, que, com o pseudônimo S.G. Tallentyre, foi autora da biografia denominada “Os amigos de Voltaire”. Fonte: Veja, disponível em https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/discordo-do-que-voce-diz-mas-8230/, acessado em 04/06/2020.[:]