Em casa que sobra pão, ninguém briga e todos têm razão?

[:pt]Sempre que debatemos o tema herdeiros, não consigo deixar de lembrar de causos que ouvia na infância e que envolvem a conflituosa relação entre família e patrimônio.

Reza a lenda que, certa vez, em seu leito de morte, o empresário[1] chamou seu filho mais velho e, ao pé do ouvido, assim sussurrou: “- filho, está vendo esse relógio de pulso? É um legítimo suíço com corda automática, caixa e pulseira em ouro 18 k, foram fabricados apenas 100 exemplares, uma verdadeira joia… ele foi trazido como único bem de valor por seu bisavô ao desembarcar no Brasil, depois passou-o ao seu avô, depois a mim, e agora que estou prestes a deixá-los, chegou a sua vez, meu querido primogênito… quer comprar???”.

Ainda que formação acadêmica e experiência de mercado sejam fundamentais para que o empresário ou a empresária construa uma história de sucesso, o tino para os negócios, a vocação para empreender e a predisposição a tomar riscos muitas vezes são inatos ou, no máximo, passados de pai/mãe para filho, mas é certo que nem todos os herdeiros ou herdeiras estarão totalmente alinhados com seus predecessores em relação ao quê fazer e a como fazer para perpetuar o patrimônio da família – não são raros os casos reais de herdeiros estudados em Harvard ou Yale que, por não compreenderem as peculiaridades do negócio ou por pura falta de humildade, lograram a façanha de quebrar negócios familiares tradicionais (às vezes centenários) e antes rentáveis.

Por outro lado, se como pessoas os herdeiros são diferentes, perante a lei são rigorosamente iguais: nos termos do artigo 1.829 do Código Civil (Lei nº. 10.406/02), que disciplina a matéria, a sucessão legítima se defere na ordem seguinte:

  • aos descendentes (filhos), em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo nos casos de regime da comunhão universal, separação obrigatória de bens ou regime da comunhão parcial, quando o titular não houver deixado bens particulares;
  • aos ascendentes (pais), em concorrência com o cônjuge;
  • ao cônjuge sobrevivente; e,
  • aos colaterais (tios, primos).

Tradução simultânea: ressalvados os direitos do cônjuge sobrevivente (seja como meeiro ou herdeiro necessário, a depender do regime de casamento), os filhos concorrem em partes iguais e preferencialmente em relação aos demais familiares no recebimento da herança (aqui chamada de legítima).

Ou seja, nas relações familiares sempre haverá o filho ou filha predileta, a ovelha negra, o desgarrado, o pródigo, o que foi tentar a sorte em outra profissão ou país, o que se interessa pelos negócios da família (mas é alijado das decisões), o que não se interessa (mas é forçado a fazê-lo), ou ainda aqueles filhos ou filhas que, infelizmente, carecem de um tutor ou curador em função de necessidades especiais ou ausência das faculdades mentais em sua inteireza; entretanto, no evento sucessão (morte) todos estarão em pé de igualdade em relação à totalidade do patrimônio familiar remanescente, salvo se o titular ou a titular houver legado bens relativos à sua parcela disponível, por testamento, caso em que, ainda assim, ocorrerá em relação à parcela indisponível (a legítima).

Quer dizer, então, que os herdeiros, por mais diferentes que sejam (idades, gêneros, vocações, sonhos, talentos, relacionamentos), são iguais perante a lei? Sim. E como lidar com tamanha dicotomia? Bom, em primeiro lugar, devemos considerar as seguintes premissas:

  • que a família ou grupo familiar tenha patrimônio positivo, líquido de dívidas, caso contrário, por óbvio, os custos superarão os benefícios de qualquer planejamento sucessório;
  • que haja autorização da lei para a transmissão de bens por herança (o caso do Brasil, como acima mencionado, ainda que com a taxação de até 8% pelo Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD), pois em determinados países, ou há restrições para tanto, ou a tributação da legítima supera os 50%, inviabilizando planejamentos sucessórios mais sofisticados; e
  • que haja herdeiros necessários, pois na ausência de filhos, cônjuges ou pais, o patrimônio poderá ser herdado por colaterais ou até mesmo ser declarado vacante e revertido ao patrimônio público, fomentando a necessidade de dispor-se do patrimônio por meio de testamento (por exemplo, para a criação de um instituto ou fundação).

Feita essa digressão e já antecipando não haver a receita de sucesso, a melhor forma de enfrentar o problema é com planejamento, enquanto ainda possível, é dizer, em vida, dispondo dos seguintes mecanismos:

  • separação do patrimônio entre os bens geradores de renda (passive incomes) e os geradores de resultado (business profits), promovendo a pré-divisão dos primeiros entre os herdeiros necessários (filhos e cônjuges, a depender do caso) para que se tornem “vacas-leiteiras”, ou seja, sejam capazes de gerar renda por tempo indeterminado, sem que se liquide o bem ou o valor do principal, inclusive por meio do adiantamento da legítima (doação em vida para herdeiros necessários);
  • em relação aos bens geradores de resultado (os negócios familiares), implementação de mecanismos de controle, a chamada Governança Corporativa, com profissionalização da gestão, remuneração diferenciada pelo trabalho dos herdeiros sucessores e criação de níveis de tomadas de decisão, com a participação de familiares não atuantes nos conselhos mais amplos; e
  • promoção da igualdade entre os herdeiros necessários independentemente dos critérios subjetivos acima destacados (vocação), ainda em vida, para viabilizar a busca pela manutenção e fomentar o crescimento do patrimônio familiar a partir de determinado ponto (D+0), sem que isso implique a necessidade de equalização no evento morte, por meio da chamada colação[2].

Claro que implementar os passos acima não é simples, seja pela interferência do complexo de relações afetivas dentro do núcleo familiar, seja pela dificuldade de discutir o assunto morte com o próprio de cujus (aquele cujos bens estão em debate), mas é certo que o negócio familiar deve sobreviver e prevalecer sobre a própria família, sob pena de não somente colocar em risco sua continuidade, mas de causar prejuízos ainda maiores àqueles que dele dependem. Diz-se que o mesmo empresário[3], em seus momentos finais, começou a balbuciar o nome dos familiares: “- Maria? – Estou aqui papai, respondeu a filha embargada. – João? – Estou aqui, respondeu o filho, já aos prantos. – Sandra? – Aqui, papai, não se preocupe, estamos todos ao seu lado, mamãe, seus irmãos… Pelo que o moribundo exclamou: – Se estão todos aqui, quem está tomando conta da empresa???”.

Conte sempre com especialistas para auxiliar seu negócio a encontrar a estrutura mais eficiente para perpetuar o patrimônio familiar, antecipando-se à aplicação mandatória dos critérios da lei e, ao mesmo tempo, respeitando-se as diferenças de cada membro envolvido, recompensando adequadamente aqueles que se apresentam como verdadeiros sucessores do titular dentro da empresa, sem deixar de assegurar o acesso daqueles não diretamente envolvidos no negócio, mesmo porque, na maior parte das vezes, é muito melhor ter pão do que razão.

[1] A nacionalidade do personagem fora ocultada propositadamente para que se evitem ofensas a quem quer que seja e/ou manifestações de qualquer sorte por parte de patrulheiros do politicamente correto, sempre à espreita para colocar em prática o “faça o que eu falo, não faça o que eu faço”.

[2] Rezam os artigos 2.002 e 2.003 do Código Civil: “Os descendentes que concorrerem à sucessão do ascendente comum são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele em vida receberam, sob pena de sonegação” e “A colação tem por fim igualar, na proporção estabelecida neste Código, as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente, obrigando também os donatários que, ao tempo do falecimento do doador, já não possuírem os bens doados”.

[3] Que, por óbvio, igualmente poderia ser representado por uma “empresária”, sem que se alterasse o potencial informativo e, ao mesmo tempo, cômico do causo.[:]